Mas comecemos por recordar o que a OMS entende como mutilação genital feminina:
“A excisão total ou parcial dor órgãos genitais femininos ou qualquer outra lesão dos mesmos por motivos não médicos”.
Longe de trazer algum benefício para saúde das mulheres e das meninas, esta prática pode resultar em hemorragias graves, problemas urinários, transmissão de HIV e causar quistos, complicações no parto e aumentar o risco de morte do recém-nascido. Além disso, inflige dor, traumas como ansiedade e depressão e, no pior dos casos, a morte das meninas e mulheres que são vítimas de mutilação genital.
A mutilação genital feminina é reconhecida internacionalmente como uma violação grave dos direitos humanos, da saúde e da integridade das mulheres e das meninas. Estima-se que mais de 200 milhões de mulheres e meninas que hoje vivem no mundo foram vítimas de mutilação genital feminina em países de África, Médio Oriente e da Ásia onde esta prática se realiza.
Em África, a mutilação genital feminina é uma prática comum em certas comunidades de 29 países: Benim, Burkina Faso, República dos Camarões, Chade, Costa de Marfim, Djibouti, Egito, Etiópia, Eritreia, Gambia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Quénia, Libéria, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, República Centro-africana, República Democrática do Congo, Tanzânia, Senegal, Serra Leoa, Somália, Sudão, Togo, Uganda e Zâmbia.
Se é uma prática proibida, porque é que continua a existir mutilação genital feminina? Nos locais onde esta prática ocorre, esta ainda é uma convenção social e tem como principais motivações a pressão da sociedade para que cada membro da comunidade faça como lhe foi feito e aos demais antes de si, assim como a necessidade de aceitação social e o receio de ser ostracizada pela comunidade.
Muitos líderes, especialmente líderes religiosos, adotam posturas ambíguas no que diz respeito à mutilação genital feminina. Alguns incentivam-na abertamente, outros consideram-na irrelevante para a religião. O mais comum é que ao longo do tempo tomem uma posição e condenem ou incentivem esta prática em função dos seus próprios interesses (nomeadamente manter-se no poder), à margem do bem-estar das meninas e das mulheres. Ainda que não existam escrituras religiosas que prescrevam a prática, quem a leva a cabo recorre frequentemente a uma argumentação com base na religião para a justificar.
Como dissemos antes, a mutilação continua a ser praticada ainda que esteja criminalizada. É em momentos de emergência que as meninas em situações de vulnerabilidade ficam ainda mais expostas. Ativistas contra a mutilação genital feminina argumentam que a pandemia do novo coronavírus teve um impacto negativo nos esforços para acabar com esta prática, principalmente devido aos seguintes motivos:
A ajuda é interrompida
Por causa desta interrupção, deixa de haver apoio social para as meninas em risco.
Acesso a recursos
As pessoas não têm acesso aos mesmos recursos que têm em tempos de paz. O casamento infantil e a mutilação prévia é um exemplo extremo mas real do que as famílias podem chegar a fazer para obter algum rendimento ou para não ter mais uma boca para alimentar em casa.
O risco está em casa
As meninas estão mais seguras na escola. Com os centros educativos fechados durante a pandemia, tornam-se expostas a vários riscos que ameaçam os seus direitos.
Mudança de prioridades na comunidade
A mutilação genital feminina deixa de ser uma das principais preocupações, pelo que as meninas ficam mais desprotegidas.
Vazio de autoridade
Pode dar-se o caso de que a pandemia provoque um vazio de autoridade que proteja as meninas e outros grupos vulneráveis da violação dos seus direitos.
A maioria dos casos de mutilação genital feminina realiza-se durante a infância, nalgum momento entre a amamentação e os 15 anos. São precisamente as mulheres mais jovens que se estão a revoltar contra esta prática e com bons resultados. Recentemente, a doutora Nahid Toubia, a primeira cirurgiã mulher do Sudão e ativista com mais de 40 anos na luta contra esta prática, fazia referência, num evento internacional em que participou, às grandes mudanças que estão a ocorrer em África.
“As pessoas estão a viajar pelo mundo. Jovens africanos que viveram parte da sua infância nos Estados Unidos, Reino Unido, outros países da Europa, etc., regressam com uma mentalidade renovada e já não vêm África com a mentalidade de aldeia pequena. Eles, e sobretudo elas, não têm medo de opor-se à mutilação genital feminina. Por todo o continente africano, as mulheres estão a criar movimentos para parar todo o tipo de práticas que violem os seus direitos. Agora há uma geração de jovens muito diferente à anterior: educados e conectados com o mundo, principalmente através do seus smartphones. Todos partilham a mesma visão de que é preciso acabar com esta prática” – Dra. Toubia
Um desses movimentos sociais é conhecido como “I Will Not” (“Não o farei”) no Sudão. Este movimento reivindica o direito a dizer não à mutilação ou “Khetan”, como se diz no país. O seu principal foco são as mães e as famílias, em particular, e a sociedade em geral que ainda vê esta prática como parte da sua cultura. Empoderam-se as meninas para que possam ser as primeiras a reivindicar os seus direitos e digam “Não o farei”. Esta iniciativa, em conjunto com outras semelhantes, escalou para uma série de manifestações massivas que acabaram por forçar o governo sudanês a criminalizar qualquer forma de mutilação em julho de 2020.
Na Ajuda em Ação realizamos ações na Etiópia, Quénia, Uganda e Moçambique para empoderar as meninas e mulheres através de iniciativas de educação, reivindicação de direitos e empreendedorismo. Todas estas ações contribuem para diminuir o risco de mutilação genital das meninas das comunidades onde trabalhamos. Além disso, em todos os nossos projetos damos às mulheres um papel protagonista e trabalhamos para as incluir, de forma equitativa, na tomada de decisões.
No Quénia realizamos ações específicas contra a mutilação genital feminina em parceria com a Fundação Kirira. Sensibilizamos as comunidades sobre as graves consequências desta prática, trabalhamos para garantir a educação das meninas, formamos clubes anti-mutilação responsáveis por garantir a integridade das meninas e apoiamos abrigos para meninas que fogem das suas casas para não serem mutiladas.
*Este artigo foi publicado originalmente em espanhol, no site da Ayuda en Acción España. Pode lê-lo aqui.