Post Convidado por Pedro Krupenski, Plataforma Portuguesa das ONGD, a propósito do lançamento do Índice Global da Fome 2020
Em tempos, a escravatura foi recurso económico usado para o enriquecimento de uns poucos. Hoje, apesar de alguns focos da designada escravatura moderna, não é tolerada, não é aceite. É considerada com uma das formas mais atentatórias da dignidade humana. E a pobreza, manifestada através da forma mais crua: a fome. Porque é tolerada? Porque não é encarada como um escândalo civilizacional a eliminar prontamente?
Como é possível convivermos com cerca de 880 milhões que sofrem de alguma graduação de fome? Talvez porque a responsabilidade pelas causas e pelas soluções não é de alguém em particular, mas de todos. É um problema complexo, com várias causas e de distintas origens. Como tal, as soluções e ferramentas, para serem eficazes, terão de ser transversais, integradas e utilizadas por todos.
A luta contra a fome não é um imperativo de solidariedade. Esta contém um elemento volitivo. Depende da vontade. A luta contra a fome é um imperativo de justiça. É um comando da dignidade humana. Não pode ser adiada, preterida, sobreposta por interesses desviantes.
O indivíduo (por exemplo, promovendo o consumo sustentável, privilegiando os circuitos curtos agroalimentares, recusando o consumo de produtos nocivos ao ambiente, combatendo o desperdício no consumo, etc.) tem um papel a desempenhar à sua escala.
Os Estados, evitando a vigente justaposição de egoísmos, organizados e concertados multilateralmente, deverão promover a pequena agricultura, a soberania alimentar, o alimento como um bem essencial e não como um commodity sujeito à volatilidade especulativa de preços, promover a economia circular, o comércio justo, combatendo o desperdício na produção e no consumo, reequilibrando as cadeias de valor, instaurando uma cultura de sustentabilidade, promovendo a economia de partilha em substituição da do açambarcamento.
Deverão, sobretudo, promover uma cultura de preservação dos ecossistemas. É que – actualmente – o problema da fome não é um problema de escassez de alimentos. Num mundo marcado pelo paradoxo da obesidade a conviver com a fome e subnutrição, demonstram que o problema não está na escassez de alimentos, mas na sua desigualitária distribuição. Contudo, se persistirmos na destruição de ecossistemas (inclusivamente para a produção de alimentos) num futuro próximo a fome dever-se-á efectivamente à falta de alimentos, originando deslocações em massa e conflitos.
Para garantir esta distribuição mais equitativa (bem como a implementação das outras soluções integradas), os Estados deverão apostar numa cooperação para o desenvolvimento orientada para resultados, centrada nas pessoas e suas reais necessidades, desligada (isto é, não condicionada às compra de bens e serviços pelo país beneficiário ao país doador) e coerente com as demais políticas externas.
Sem isto, chegaremos a 2030 sem cumprir o segundo Objectivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que propõe erradicar a fome. A pandemia que atravessamos globalmente, os conflitos que perduram, as deslocações massivas de pessoas que não cessam, as catástrofes naturais que se acumulam, as alterações climáticas e redução da biodiversidade que seguem sendo abordadas sem determinação, estão a tornar o cumprimento desse objectivo paradoxalmente mais difícil e mais urgente. É preciso agir e agir já.
Na edição de 2020 do Índice Global da Fome, dos 107 países avaliados, Timor-Leste surge no 106.º lugar. Aparece como um dos países com classificação de “alarmante” no que diz respeito ao índice de fome. A classificação de “alarmante” persiste desde 2006, data em que este país começou a ser tido em conta no índice. Está entre os países em que a fome é mais alarmante desde 2012. Passados 20 anos da sua independência, um país com riquíssimos recursos naturais, mantém uma produtividade agrícola muito baixa, sistemas de educação, saúde, água e saneamento bastante pobres. Os rendimentos das famílias são muito baixos, o consumo alimentar é desadequado em quantidade e em qualidade, resultando em cerca de 15% de crianças subnutridas.
Timor-Leste está entre os países parceiros da cooperação pública portuguesa. É preciso mais e melhor. Não queremos fome, sobretudo fome a falar em Português.