Ouvi-la toca o nosso coração e provoca admiração. São poucas as vezes em que uma vítima de violência sexual se coloca em frente a uma câmara com um discurso tão rico, tão generoso, reconhecendo o perdão, sem lhe falhar a voz e com uma atitude de louvar. O sorriso e a vontade de viver estão vincados no seu rosto, mesmo depois de ter vivido uma agressão de tamanha magnitude. Yirley vive em El Salado, local onde ocorreu um dos piores massacres do conflito armado colombiano.

Entre 16 e 21 de fevereiro de 2020, os paramilitares do Bloco Norte das Autodefesas Unidas da Colômbia, com o apoio das Forças Armadas, torturaram e mataram dezenas de camponeses inocentes num assassinato massivo que ficou conhecido como “o massacre de El Salado”. As atrocidades perpetradas nesses três dias de horror incluem a violência sexual a mulheres, o desmembramento de pessoas com motosserras e o empalamento de idosos e mulheres grávidas. 66 pessoas – selecionadas à vista de todos – perderam a vida assassinadas, provocando a deslocação da restante população sobrevivente: cerca de 7.000 pessoas fugiram do campo para as cidades.

O testemunho de Yirley e a sua luta contra a violência sexual


“Quando tinha 7 ou 8 anos, nem sequer conhecia a palavra conflito porque esta era uma povoação muito tranquila… Já com 11 ou 12 anos, começámos a ouvir a palavra “paramilitar” ou “guerrilha”. Aos 13 anos tive de me deslocar pela primeira vez por causa de um massacre que houve... Mais tarde, aos 14 anos, senti um impacto muito maior pois vivi a violência na minha própria pele”, conta Yirley Velasco, uma das vítimas do massacre de 2000, mas também uma das sobreviventes, uma das 3.000 pessoas que regressaram a El Salado nestes últimos 17 anos após o massacre. Regressar não pode ter sido fácil. Só com extrema coragem se pode superar um episódio de violência sexual. Yirley foi violada de forma coletiva por quatro paramilitares quando tinha 14 anos. Nessa violação, da qual guarda sequelas físicas e emocionais, Yirley ficou grávida da sua primeira filha. Foi a sua primeira experiência sexual. “Levaram-me para uma casa que está ali ao lado e foi ali que vivi a experiência mais horrível que um ser humano pode viver; abusaram do meu corpo, abusaram de mim. Nesse momento, mataram-me…precisamente nesse momento”.

Segundo o recente relatório “A Guerra inscrita no corpo”, do Centro Nacional de Memória Histórica (CNMH) da Colômbia, um total de 15.705 pessoas foram vítimas de violência sexual durante o conflito armado colombiano entre os anos de 1958 e 2017. Yirley foi uma delas: “só me recordo da primeira pessoa que abusou de mim; foram os médicos que me disseram que fui abusada por quatro paramilitares…o resto não lhe posso contar porque não me recordo do que se passou a seguir. Consegui superar esta experiência porque continuo nesta luta, porque continuo a apoiar as mulheres”. Yirley transformou esta dificuldade numa luta por uma causa maior e criou a associação “Mulher e Vida de El Salado”, uma associação formada por 14 mulheres vítimas de violência sexual. “Um dia atrevi-me a levantar a minha voz, porque aqui falava-se de estradas, de água, de tudo, mas não se falava das necessidades que, nós mulheres, tínhamos nesta povoação. Foi então que algumas mulheres da comunidade vieram ter comigo e me disseram: “Yirley, nós também fomos vítimas de violência sexual”.

O trabalho da Ajuda em Ação e o perdão de Yirley


A Ajuda em Ação trabalha em El Salado e nas redondezas desde 2013 – em colaboração com a Fundação Semana, nosso parceiro local – para fortalecer o processo de paz e melhorar as condições de vida da população que regressou a esta zona, com especial atenção à infância, aos jovens e às mulheres. A Associação Mulher e Vida é uma das iniciativas que recebe o nosso apoio.

Yirley ainda não conseguiu falar deste tema com a sua filha mais velha. “Eu sei que ela sabe mais do que eu acho que ela sabe… porque com a idade que tem já me pergunta pelo pai. Essa vai ser uma tarefa dura, é um dos desafios da minha vida, é o maior de todos”. A violência sexual que sofreu deixou em Yirley sequelas físicas e psicológicas, mas já venceu outro grande desafio: perdoar. O seu testemunho é um exemplo de capacidade de perdão em plena construção de paz: “ainda que os meus agressores não me tenham pedido perdão, nem sequer me interessa que o façam, eu perdoei-os…perdoei-os de coração, com a minha alma”, conta tranquila. “Tinha necessidade de perdoar porque se não o fizesse, ia continuar a viver amargurada, com esse rancor que não me deixava viver em paz”.